As crianças iguais a todas as crianças
Enfim li Jorge Amado, e os Capitães da Areia agora me acompanham
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Comecei a ler Jorge Amado aos 37 somente para me redimir por não tê-lo lido aos 17. Capitães da Areia fazia parte da lista de leituras obrigatórias da Fuvest, a professora de Literatura do Ensino Médio aplicou uma prova sobre o livro, e eu passei por ambas ignorando o Jorge Amado por preguiça.
Com viagem marcada para a Bahia, decidi, com 20 anos de atraso, conhecer a obra do homem para além das aulas teóricas do 3º ano, das quais eu já não me lembro mais, não só porque se passaram duas décadas, mas também porque nessas décadas eu me tornei mãe e sobrevivi a uma pandemia de Covid 19, dois acontecimentos que comprometem a memória da gente.
Acontece que ler Capitães da Areia hoje foi uma decisão mais feliz do que eu imaginava. É fácil gostar de leituras fluidas como folhetins e que terminam me fazendo entender um tiquinho mais o Brasil, ainda que o retrato do país que o livro pinta não seja do tipo que dá gosto de ver.
A história de Pedro Bala e seus amigos, meninos de 12, 13 anos que vivem pelas ruas de Salvador, sem pai nem mãe, sobrevivendo de furtos, foi publicada em 1937. Mas, exceto por uma ou outra expressão que já caiu em desuso - e que poderia muito bem ser recurso estilístico -, eu teria acreditado se me dissessem que é um livro de 2025.
Da sádica violência policial ao desprezo e humilhação das carolas da igreja, tudo o que o grupo de meninos sofre no livro soa amargamente atual. Enquanto os jornais noticiam os roubos dos capitães da areia, abordando o assunto com distanciamento e frieza, a cidade anseia pela captura e punição “exemplar”, com surras e torturas, dos meninos. Quando chega a epidemia de varíola, eles e todos os moradores do entorno do areal e da zona portuária que contraem a doença se escondem, porque buscar tratamento médico destinado aos mais pobres é o mesmo que se voluntariar para o sacrifício.
De toda uma cidade, só quem olha por eles é uma mãe de santo quase tão vulnerável quanto o grupo e um padre sem paróquia que, ao ser pego cuidando dos meninos, é execrado pelas senhoras caridosas da igreja e repreendido pelo bispo.
Cada passagem escrita por Jorge Amado na década de 30 me lembrou um acontecimento recente, dos mortos por má gestão do poder público em Manaus durante a pandemia às ameaças sofridas pelo padre Júlio Lancelotti por alimentar moradores de rua. E, a cada página virada, a percepção mais clara de que o salto do extremismo conservador brasileiro nos últimos anos não é novidade, já que esse mesmo extremismo, combinado com cinismo e mediocridade, sempre esteve latente.
Até o fato de a obra ter sido censurada no lançamento, durante o governo Vargas, por “propaganda comunista”, soa tristemente contemporâneo. Embora Jorge Amado de fato fosse abertamente comunista, o “crime” de Capitães da Areia foi, pela primeira vez na literatura brasileira, humanizar meninos infratores, tecer críticas ao perverso sistema de acolhimento desses meninos (no que veio a se tornar a Febem), expor o abismo social e as incoerências do dito progresso de uma das grandes cidades brasileiras, cujas classes dominantes renegavam (ainda renegam) as vítimas do mesmo sistema que as beneficia, e também satirizar as caridosas boas almas enfurnadas nas igrejas, que se julgam moralmente superiores mas fazem questão de humilhar e sabotar todas as chances de meninos pobres como Pedro Bala de ter uma vida menos dura.
Vale contextualizar que a década de 30 foi determinante no processo urbanístico brasileiro, pois o êxodo rural atingiu seu ápice e as estruturas das cidades ocasionaram o surgimento das primeiras favelas.
De lá para cá, os cenários urbanos só se tornaram mais desiguais. Ainda ontem ouvi no rádio a notícia de que o Brasil tem hoje mais de 345 mil pessoas morando nas ruas, 5% a mais do que no ano passado, segundo o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas. Destas, 10 mil são crianças e adolescentes.
Os números me fizeram pensar em Pedro Bala e também no inverno que acaba de chegar, trazendo mais uma frente fria com temperaturas na casa dos 5 graus em São Paulo - a capital com maior quantidade de moradores de rua do país.
Cidadãs de segunda classe
Capitães da Areia foi uma obra disruptiva para a época. Não pelo dito regionalismo, já que a trama representa todo o Brasil, mas por ser uma história de aventura, amor, sofrimento e superação protagonizada por um menino órfão, morador de rua, que vive de furtos e golpes, e pelo seu grupo de amigos.
Mas não consegui deixar de reparar em como, até na mente de um homem à frente de seu tempo como Jorge Amado, as mulheres eram pintadas como menores, menos importantes, menos dignas, e com uma óbvia função sexual. Em alguns momentos eu me questionei se o autor estava, lá em 1937, tecendo críticas também à posição da mulher na sociedade. Se a intenção foi essa, não foi o que me pareceu.
Aliás, pelo contrário: passagens de estupro escritas por ele me reviraram o estômago, e pensei que lê-las aos 17 anos teria me marcado negativamente. Que bom que eu involuntariamente me poupei de aprender tais conceitos sobre a sexualidade feminina, porque eu não acredito que na época eu teria maturidade para discernir quais discursos seguem atuais e quais envelheceram pessimamente e não cabem mais.
Essa discussão também não era puxada na escola, durante as aulas de literatura, que se resumiam a explicar e datar os movimentos estéticos, porque era isso que caía no vestibular.
Valeu a leitura, afinal?
Não sou ninguém na fila do pão para dizer o que é válido na literatura brasileira, mesmo assim, vou dar o meu pitaco. Eu não acho que a questão da mulher tire o valor de Capitães da Areia. A obra segue sendo um marco literário e consegue retratar questões sociais do Brasil de modo atemporal. Bom, talvez a parte da atemporalidade seja mais culpa da sociedade brasileira do que da obra em si. Mesmo assim, a narrativa é construída de maneira a não ficar datada, porque há uma trama bem construída que sobrepõe esse pano de fundo de crítica social brasileira.
Mas acho que vale ler com essa ressalva em mente: é um livro escrito por um homem, na década de 30. Um homem branco. Então, ele vai se referir aos meninos negros sempre como pretinhos e negrinhos, de um jeito que para mim pareceu incômodo. E ele vai atribuir um papel sexual às mulheres. Papel este que chega a ser rompido por uma das personagens femininas, e até essa ruptura é escrita por Jorge Amado de maneira bastante cristã, colocando a moça em uma posição análoga a de Virgem Maria.
No fim, o que eu gosto de tirar de um livro é a sensação de que, mesmo tempos depois de findada a leitura, ele segue reverberando em mim de alguma forma. Capitães da Areia fez isso porque conectou algumas peças no meu entendimento sobre a literatura brasileira, porque desvelou algumas camadas de reflexão sobre a sociedade brasileira, e porque deixou o gosto amargo de notícias ruins ainda pior.
“E eles esqueceram que não eram iguais às demais crianças, esqueceram que não tinham lar, nem pai, nem mãe, que viviam do furto como homens, que eram temidos na cidade como ladrões. Esqueceram as palavras da velha de lorgnon. Esqueceram tudo e foram iguais a todas as crianças.”