O livro da Badinter e ser mulher nesse mundo escroto
Nossa máxima realização pessoal é a maternidade? Tudo referente a ser mãe nos é natural? Não. E não. Em O Conflito, a filósofa feminista francesa Elisabeth Badinter analisa por que
Em tempos de PL 1904/24, que equipara o aborto a homicídio até mesmo em casos de estupro e propõe pena maior à mulher que aborta do que ao estuprador, discutir por que nos empurram para a maternidade e desconstruir o mito dela como a máxima realização feminina ainda se faz necessário.
Não nos vendem a maternidade como nosso maior e melhor destino porque nos querem plenas e realizadas. Longe disso. O discurso da maternidade como o máximo do amor, da realização e da potência na vida de uma mulher é construído para o controle, para nos conduzir a esta maternidade que temos hoje na cultura ocidental: propositalmente aprisionante, desamparada e insalubre.
Basta olhar os dados. Em 2024, 15% dos lares brasileiros são chefiados por mães solo. Além disso, 72,4% das mães nesta condição vivem só com os filhos, sem ter uma rede de apoio próxima.
Nos lares em que não houve abandono paterno, a situação não é tão melhor: somente 50% dos homens no Brasil assumem tarefas domésticas. E, mesmo assim, as mulheres ainda dedicam 10 horas a mais ao trabalho doméstico do que eles, por semana.
Some isto a dupla ou tripla jornada de trabalho, piores salários, poucas chances de crescer profissionalmente, muitos dedos apontados e culpabilização.
É este cenário de deterioração de nossa saúde física e mental que nos é epurrado goela abaixo em uma embalagem de plenitude e realização.
Por isso, a discussão que a filósofa feminista francesa Elisabeth Badinter trava em O Conflito - A Mulher e a Mãe é bastante pertinente.
Para analisar o lugar que a maternidade ocupa hoje na vida de jovens mães europeias - parecido com o lugar na vida das mães brasileiras de classe B (segundo os parâmetros do IBGE), ela volta aos anos 50, nas mães cristãs da Leche League, e vai trazendo estudos, discursos e contrapontos para explicar como os modos de exercer a maternidade foram sendo transformados e os discursos refinados em direções bastante específicas, até chegarmos aos grupos de Facebook de mães da cama compartilhada, amamentação em livre demanda, maternidade em tempo integral.
Badinter é contra isso? Não. Mas ela põe a sacralidade destas práticas em perspectiva e explica como este discurso supostamente libertador também é, sob outros ângulos, aprisionante.
Será que o amor materno é mesmo inato? Será que é o ápice da concretização do sagrado feminino de toda mulher? Tudo que envolve a maternidade - gestar, parir, amamentar, dedicar 100% do tempo e energia - é mesmo natural para nós? E se não é, por que ainda hoje nós, feministas ou não, acreditamos que deveria ser?
Eu queria ter lido esse livro 8 anos atrás, quando eu tinha um recém-nascido nos braços. Queria que esse livro tivesse entrado na minha lista de leitura no lugar de A Maternidade e o Encontro com a Própria Sombra, que me macetou o juízo durante o puerpério.
Mas calhou de eu ser parte da geração de mães que pegou o ápice do retorno à "essência" do "sagrado feminino", e as minhas referências acabaram sendo outras. Restou então revisitá-las agora, anos de terapia depois, e recomendar a leitura às amigas que querem ser mães.
Tomemos nossas decisões conscientemente e munidas de informações limpas dos vieses da disputa de poder sobre nossos corpos.